RSI. O que é, afinal, o Rendimento Social de Inserção?

24 Janeiro 2022

O que é o RSI? O que querem os partidos fazer dele? “Estamos a falar dos mais pobres dos pobres”, diz a socióloga Lígia Ferro, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e presidente da Associação Europeia de Sociologia (ESA), que explica como funciona o rendimento social de inserção.

O Rendimento Social de Inserção — RSI — entrou na campanha eleitoral à boleia da alegada “subsídiodependência” que alguns partidos denunciam. O que é, afinal, esta prestação social, para que e para quem serve?
Em resumo, a despesa com o RSI não chegava a pesar 1% nos gastos totais da Segurança Social. A escada para aceder é longa e o valor médio que cada família recebe não chega aos 270 euros mensais. Entre os mitos e os factos, o certo é que garantir as necessidades mínimas dos “mais pobres dos pobres” pode ser o caminho para os tirar da pobreza.
Lígia Ferro, professora de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e presidente da Associação Europeia de Sociologia (ESA), explica que se trata de “um apoio a quem mais precisa e está em situações extremas de vulnerabilidade”.
O RSI nasceu em 1996, no governo de António Guterres, com o nome Rendimento Mínimo Garantido, “para dar resposta a uma recomendação do Conselho de Ministros da União Europeia de 1992 — portanto foi a própria União Europeia que recomendou que os Estados-Membros reconhecessem o direito de todos os cidadãos a viverem com dignidade, criando recursos e prestações sociais para manter estes níveis mínimos de dignidade”, conta a especialista.
O objetivo é não apenas garantir que são supridas as necessidades mínimas, mas também inclui um programa de inserção, um contrato com o Estado, tendo em conta “as características e condições dos agregados familiares. Este contrato visa a inserção social, laboral e também comunitária dos seus membros”, explica.
Lígia Ferro afirma ainda que esta prestação se manteve já durante um quarto de século, entre legislaturas do PS e PSD, “precisamente porque há um consenso maioritário na nossa sociedade de que de facto precisamos de seguir com estes apoios para pessoas que se encontrem em situações de vulnerabilidade social e económica extrema.”
E é mesmo “preciso estar em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade”, diz: “as condições de acesso implicam que as pessoas, que as famílias que necessitam do apoio se encontrem nesta situação e que cumpram também diferentes condições de atribuição, devidamente estabelecidas e verificadas pela Segurança Social.”
Entre elas, “os requerentes têm de ter residência legal em Portugal; têm de estar numa situação de pobreza extrema devidamente comprovada; têm que assumir um compromisso formal e expresso de celebrar este contrato de inserção; têm de manifestar também disponibilidade para o trabalho, caso estejam em condições de trabalhar, para formação, para outras formas de inserção que se possam revelar adequadas a esses casos”, conta.
Já “o valor da prestação é igual à diferença entre o valor do Rendimento Social de Inserção que é calculado em função da composição e dos rendimentos do agregado familiar”, explica, acrescentando que a prestação é atribuída por um período de um ano, que pode ser renovável, “desde que se mantenham estas condições de atribuição e tudo isso é devidamente verificado pela Segurança Social.”
Que valores são estes? Segundo os dados da Segurança Social, o titular do RSI recebe 189,66 euros mensais. Os restantes adultos do agregado recebem apenas 70% deste valor, ou seja, 132,76 euros; cada criança ou jovem com menos de 18 anos tem direito a 50% do valor total, 94,83 euros.
Mas quem são estas pessoas? “Nós aqui temos uma grande vantagem: temos uma comunidade de cientistas sociais que tem feito muito trabalho sobre estes números. Se olharmos para os números do final de 2020, e segundo o relatório que está disponível no DataLABOR, que foi elaborado por vários cientistas sociais — o Frederico Cantante, Tânia Almeida, Catarina Mendes Cruz, Pedro Estêvão, Renato Miguel do Carmo, Pedro Adão e Silva — que são todos sociólogos que têm trabalhado também neste domínio, sabemos que a composição social dos beneficiários de RSI é muito equilibrada em termos de género, temos mais ou menos 48% de homens e 52% de mulheres, em 2019, que foram os que eles trabalharam e que publicaram posteriormente em 2020, se bem que nós sabemos que existe um número mais elevado de mulheres idosas que recebem esta prestação”, indica Lígia Ferro.

“Não nos podemos esquecer de que muitas mulheres fizeram um trabalho doméstico durante décadas sem fazer qualquer desconto e que agora, depois de uma vida dedicada à casa e à família, apenas têm esta forma de viver com o mínimo de dignidade”, acrescenta.
“Existe também um peso relativo muito elevado dos grupos etários mais novos. Em 2019, 41% dos beneficiários tinham menos de 25 anos e 31% menos de 18 anos — portanto seriam menores de idade, isto quer dizer que um terço dos beneficiários são menores de idade”, diz ainda a especialista. “Se tivermos em conta também outros estudos recentes levados a cabo sob a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos, sabemos que a pandemia teve um impacto muito grande no aumento da pobreza infantil, mais uma razão pela qual devemos continuar a garantir o Rendimento Social de Inserção e neste momento difícil da pandemia em que as desigualdades sociais se têm vindo a agudizar e que têm afetado particularmente as crianças e os jovens menores de idade”.
Vários estudos revelam ainda que há um “maior risco documentado em Portugal de pobreza entre os agregados domésticos mais numerosos, nomeadamente aqueles que são compostos por três ou mais dependentes.” Por fim,”as pessoas com deficiência são também em grande parte destinatários deste apoio”, enumera Lígia Ferro.
“As questões que se têm levantado relativamente a determinadas comunidades étnicas não têm qualquer fundamento em estudos científicos, há aqui um sensacionalismo, que é acoplado ao usufruir desta prestação, que não tem fundamento”, alerta.
Mas não só as etapas para aceder a esta prestação social são muitas, como há ainda “uma certa estigmatização associada às pessoas que auferem este apoio”, diz Lígia Ferro, o que faz com que quem não precise mesmo deste rendimento acabe por não o pedir. “É preciso chegar ali a um momento de decisão e tem de haver muita necessidade para tomar essa decisão de requerer o apoio”, defende.
Importa lembrar que ser pobre não significa apenas não ter dinheiro. “As carências de capital económico vêm a par de carências de capital social e redes de contactos que possam trazer oportunidades aos indivíduos”, lembra a especialista. É que sem dinheiro, é mais difícil aceder aos mesmos círculos que, por exemplo, um jovem cujos pais não tenham carências económicas consegue aceder. Sem dinheiro, uma criança pode crescer arredada até de um certo capital cultural, condicionando-a em vários níveis.
Mas há mais: o estigma posto em cima de muitos dos beneficiários deste rendimento “reforça a sua própria situação de vulnerabilidade”, diz ainda. “Naturalmente, se uma pessoa se encontra em situação de carência extrema e não vê cumpridas as suas necessidades mais básicas não terá praticamente chances de sequer pensar em estratégias de mobilidade social. Quando falamos em elevador social, estamos a falar de mobilidade social que normalmente vem associada ao aumento do capital cultural, nomeadamente das credenciais escolares, da formação, da especialização que permite aceder a melhores condições de trabalho, melhores contratos, etc.”
É como uma bola de neve: sem dinheiro, sem redes e sem contactos, torna-se mais difícil pensar na formação académica e profissional que acabaria por ser a chave para aceder a melhores rendimentos.
“Por isso, se nós queremos realmente promover a mobilidade social, temos de criar oportunidades de formação e, antes disso, apoiar os mais pobres dos pobres para que possam satisfazer as suas necessidades mais básicas e que sejam apoiados neste projeto integrado de inclusão social”, afirma a socióloga.
“Devemos questionar a narrativa da culpabilização de quem recebe esta prestação”, diz ainda Lígia Ferro, lembrando mais uma vez que o RSI se alarga a várias esferas para além da prestação monetária. E, sabendo que muitos dos beneficiários são crianças e jovens, “o RSI não é apenas desenhado para ter impactos económicos materiais, mas também no domínio das oportunidades; o acesso das famílias ao Rendimento Social de Inserção vem mitigar o sofrimento material dos menores, mas também vem tentar reduzir outras formas de exclusão outras formas de exclusão social, nomeadamente ao nível da escola — e é a escola que pode de facto romper com uma determinada condição social e abrir oportunidades, abrir a porta para esse tal elevador social que nós queremos.”
Em 2019, o RSI representou 0,9% dos gastos da Segurança Social (pouco mais de 347 milhões de euros). Em novembro do ano passado, segundo os números da Segurança Social, as 97.700 famílias abrangidas pelo RSI recebiam em média 261,33 euros por mês. Desde 2015, o número de beneficiários fica sempre abaixo das 300 mil pessoas — ou seja, menos de 3% da população portuguesa recebe esta prestação social.
“Não faz sentido falarmos de uma despesa do sistema de segurança social ou de um privilégio desta fatia população que é minoritária”, diz Lígia Ferro. “Não é por aí que vamos colocar em causa a sustentabilidade do sistema de segurança social”, acrescenta, alertando para a “desinformação sobre o valor e o significado que esta prestação social tem não só para os que dela usufruem como para a sociedade em geral”.
“Os partidos políticos também têm o dever de contribuir para um debate esclarecedor — creio que a maioria dos partidos com assento parlamentar tem feito este esforço, numa lógica de responsabilidade social. O partido Chega tem-se demitido de olhar para os factos e tem feito um uso demagógico de temas como este do Rendimento Social de Inserção. Felizmente existem números e uma comunicação social livre que tem também o seu papel.”
“Esta é uma das prestações sociais mais discutidas, mais questionadas no espaço público — muitas vezes sem fundamento empírico. Fala-se muito no subsídiodependência, mas não se conhecem os números, não se conhecem as taxas de rotatividade dos beneficiários, não se conhecem os efeitos que exerce esta prestação também mobilidade social individual interfamiliar dos pobres. Há esta estigmatização dos beneficiários do RSI que descontextualiza as necessidades materiais de acesso à prestação e que decorrem do desemprego e outras formas de inserção extremamente precárias no mercado laboral”, diz ainda a especialista.
Esse é, aliás, um dos maiores desafios que se colocam a esta prestação social: “este permanente questionamento, esta discussão sobre se de facto o subsídio devia existir, e se há esta subsídiodependência — sem fundamento empírico”, sublinha.
Outro desafio: “Fala-se muito nas lacunas da prestação social, na reprodução da pobreza — há também muito este discurso de que o RSI legitima a reprodução da pobreza, mas não se avaliam os constrangimentos pessoais, familiares, contextuais, concretos, que contribuem para estas situações extremas de pobreza”.
O que acontece nos outros países europeus?
Não existe um sistema comum, entre os países europeus, de rendimento mínimo. Não existe sequer uma definição comum do que isto significa, o que espelha a diversidade de visões (e soluções) para garantir um rendimento a quem não tem nenhuma outra fonte.
Em 1992, a ainda Comunidade Económica Europeia (hoje União) recomenda que “ as pessoas excluídas do mercado de trabalho, quer porque a ele não tenham podido ter acesso, quer porque nele não se tenham podido reinserir e que não disponham de meios de subsistência, devem poder beneficiar de prestações e de recursos suficientes, adaptados à sua situação pessoal.”
A recomendação — que deve ser aplicada “de acordo com as regras próprias de cada país” — diz ainda que “todas as pessoas que tenham atingido a idade de reforma mas que não tenham direito à pensão e que não disponham de outros meios de subsistência devem poder beneficiar de recursos suficientes e de uma assistência social e médica adaptada às suas necessidades específicas.”
>Depois, em traços gerais, são definidos os critérios básicos que esta prestação deve seguir. É daqui que nasce, já em 1996, o Rendimento Mínimo Garantido, em Portugal, que, como vimos atrás, foi mais tarde renomeado Rendimento Social de Inserção.
O objetivo da CEE é que a solução que cada Estado Membro implemente “tenha em conta o nível desejável de recursos e prestações suficientes para viver de acordo com a dignidade huma­na.”
Já durante o trio de presidências do Conselho da União Europeia de que Portugal fez parte (no primeiro semestre de 2021), o 14.º princípio do Pilar dos Direitos Sociais, reforçado na Cimeira Social do porto, reafirma que “qualquer pessoa que não disponha de recursos suficientes tem direito a prestações de rendimento mínimo adequadas que lhe garantam um nível de vida digno em todas as fases da vida, bem como a um acesso eficaz a bens e serviços de apoio. Para as pessoas aptas para o trabalho, as prestações de rendimento mínimo devem ser conjugadas com incentivos para (re)integrar o mercado de trabalho.”
Uma nova recomendação de Bruxelas tem adoção prevista para 2022.Um ‘briefing’ de 2021, apresentado ao Parlamento Europeu, divide os esquemas de rendimento mínimo por grupos. Num primeiro grupo, que inclui os países nórdicos, mas também a Bélgica, o Luxemburgo ou os Países Baixos, os sistemas de rendimento mínimo surgem como o patamar mais baixo, havendo, antes de lá chegar, sistemas “mais ou menos generosos” para substituir os rendimentos de trabalho para as pessoas capazes de trabalhar. “Nestes países, servem sobretudo uma função anti-pobreza.”
Nestes países, explica o relatório, “o rendimento mínimo está firmemente institucionalizado, mas é pequeno porque os níveis superiores dos sistemas de proteção social (seguros de desemprego ou deficiência e/ou assistência ao desemprego) revelam um elevado nível de inclusão em termos de cobertura, condições de elegibilidade e duração dos benefícios.” Assim, um rendimento mínimo de último recurso com a avaliação da situação económica acaba por ter “um papel residual de cerca de 2 por cento entre a população em idade ativa na Dinamarca, Suécia ou Bélgica”.
Noutro grupo de países, os rendimentos mínimos fazem partes de esquemas mais complexos: “funcionam não apenas como um instrumento anti pobreza, mas também como o principal instrumento para a proteção social”, descreve o documento. “Este é geralmente o caso em países anglófonos (Reino Unido e Irlanda), onde a proteção social superior é limitada”. Nestes países, os subsídios ao desemprego e benefícios sociais são combinados no programa de rendimento mínimo dependente da avaliação financeira dos indivíduos, “chegando a grande parte da população em idade ativa capaz de trabalhar”.
Já na Alemanha, os benefícios dependentes da avaliação da situação económica do requerente “assumem o mais importante papel no ‘sistema de rendimento básico para quem procura trabalho’, incluindo dois terços de todos os desempregados”. Com a fusão, em 2005, dos subsídios sociais e de desemprego com o “rendimento básico para quem procura trabalho”, nasce o chamado ‘Hartz IV’, que é hoje “o esquema de proteção social dominante para os agregados com necessidades”.
Países como a Áustria ou a França usam sistemas de escalões, combinando alguns subsídios de desemprego com instrumentos de assistência aos desempregados baseados na avaliação da sua situação económica. “São soluções a montante dos rendimentos mínimos, que subsequentemente entram em ação quando os benefícios do subsídio de desemprego se esgotam”, descreve o relatório assinado por Regina Konle-Seidl, Departamento Temático das Políticas Económicas e Científicas e da Qualidade de Vida do Parlamento Europeu.
Por fim, “nos países economicamente mais frágeis do sul e leste europeus [de que Portugal faz parte], os rendimentos mínimos são normalmente categóricos, irregulares e incompletos”. Segundo esta análise, “geralmente comprem apenas pequenos segmentos da população”, ainda que, nos casos de Itália, Espanha e Grécia, destaca o documento, “dêem a maioria do apoio a famílias de baixos rendimentos na forma de transferências tipo-subsídio”.

Fonte: Sapo