Mais de metade dos trabalhadores diz já ter sido discriminado

29 Dezembro 2022

É a desigualdade entre géneros que nos vem à memória quando ouvimos falar de discriminação laboral. Mas em Portugal esse não é o maior fator de discriminação no trabalho ou no acesso ao emprego. A lei laboral nacional — e também o enquadramento europeu — proíbe qualquer forma de tratamento diferenciado entre os profissionais, seja ela baseada no género, raça ou etnia, idade, condição socioeconómica ou outras, mas, em Portugal, 55% dos profissionais afirmam já ter sido alvo de algum tipo de discriminação em contexto laboral. O número é avançado pela consultora de recrutamento Kelly International e tem por base os resultados de um inquérito realizado em oito países europeus, entre os quais Portugal, a que o Expresso teve acesso. Segundo o relatório, a idade e o tipo de contrato são as formas de discriminação mais reportadas pelos trabalhadores em Portugal.

Daiane Ramalho é o rosto das estatísticas. A arquiteta brasileira de 39 anos chegou a Portugal há dois. Acompanhou o marido, que por motivos familiares optou por regressar ao seu país. Mas nunca imaginou que, tendo em conta a proximidade linguística, encontrar emprego seria tão difícil. Garante que não está a ser exigente e que há muito ampliou a pesquisa além da sua área de formação. “Já nem procuro nada em arquitetura”, diz, acrescentando que as únicas oportunidades que conseguiu “foram temporárias, num call center”, e que mesmo nessas foi confrontada com barreiras no recrutamento.

Atualmente desempregada, Daiane fala em “discriminação linguística”, que, combinada com a questão do género “e o muito preconceito que há em Portugal em relação aos profissionais brasileiros”, faz com que nos últimos dois anos tenha vivido situações que têm tanto de desagradáveis como de caricatas. “Desde me terem dito, numa entrevista, que para estar na receção era preciso ter um português exemplar e não o meu a terem questionado as minhas qualificações, até quererem perceber se pensava ou não ter mais filhos”, já ouviu de tudo um pouco. Miguel (que pediu anonimato) tem uma história semelhante. No seu caso, diz, “pesa a cor da pele, o apelido tipicamente angolano e a morada, na Amadora”. Filho de mãe portuguesa e pai angolano, já viu várias portas fechar- se no mercado de trabalho. Apesar de ter concluído o curso de Gestão com uma média destacada, diz que tem “uma conjugação de fatores” que pesam contra si. Passou por vários processos de seleção em grandes multinacionais de consultoria a operar em Portugal — o seu sonho de carreira — sem conseguir carimbar o passaporte de entrada. Trabalha atualmente numa startup ligada ao comércio eletrónico.

Idade é o que mais pesa

A história de Daiane e Miguel é uma entre as muitas traduzidas em número no relatório que a Kelly International acaba de divulgar. O inquérito realizado junto de 5600 profissionais de distintos sectores de atividade, em oito países europeus — Irlanda, Alemanha, Países Baixos, Suíça, França, Reino Unido, Itália e Portugal, onde foram inquiridos 1530 trabalhadores —, analisa, entre outros aspetos do mercado de trabalho, a questão das desigualdades e da discriminação e os novos desafios que impõem ao futuro do trabalho.

Segundo o estudo, em Portugal, 55% dos profissionais já foram confrontados com situações de discriminação em contexto de trabalho. A percentagem supera a média dos restantes sete países onde o inquérito foi conduzido, que é de 52%. Os fatores discriminatórios reportados em Portugal são distintos dos verificados nos outros países analisados. Por cá, a idade é o fator que mais pesa, com 24% dos inquiridos a denunciarem-na. Menos comum, mas também relevante em Portugal, é a discriminação por tipo de contrato (tratamento diferenciado de trabalhadores temporários ou independentes face aos restantes), sinalizada por 12% dos inquiridos, ou a discriminação por nível de qualificação (12%), que ocorre quando um trabalhador mais experiente e com conhecimento prático é preterido numa promoção por não ser licenciado (ver infografia).

Pedro Pessoa, diretor de Desenvolvimento de Talento da Kelly Portugal, admite que o retrato da discriminação laboral no país, traçado pelo inquérito é preocupante. “55% é uma percentagem elevada para um país como Portugal, que tem percorrido um caminho contínuo e consistente de combate à discriminação e às desigualdades”, nota. Acresce que têm vindo a ganhar consistência, entre os governos e organizações internacionais, os receios de que as novas formas de trabalho — como o trabalho remoto — possam acentuar essas desigualdades, por exemplo, se os trabalhadores remotos começarem a ser deixados para trás nas oportunidades de progressão, no salário, na formação. Pedro Pessoa não descarta a hipótese, mas admite que a vê como pouco provável tendo em conta o enquadramento legislativo existente (ver texto na página ao lado).

Mafalda (nome fictício) não partilha da mesma visão. Há mais de 15 anos no departamento financeiro de uma empresa na área do retalho, sete dos quais como número dois da diretora, ficou incrédula quando percebeu que o pedido para trabalhar em regime híbrido, de modo a acompanhar melhor as filhas gémeas de 3 anos, lhe iria custar a progressão que todos os elementos da equipa viam como natural. “A diretora financeira anunciou a saída há um mês e eu fui chamada pelo diretor-geral para me informarem de que seria a escolha natural e era a aposta da empresa para a função, mas nas minhas atuais circunstâncias, tendo optado pelo regime híbrido, não reunia condições para liderar equipas”, diz ao Expresso, acrescentando que sempre o fez em regime de substituição na ausência da diretora.

Situações como as de Mafalda podem tornar-se cada vez mais comuns, num cenário de expansão do trabalho remoto. Isso mesmo admitiu recentemente ao Expresso Sara Falcão Casaca, professora catedrática do ISEG e investigadora na área das desigualdades, ao referir que o recurso à tecnologia e o seu impacto na forma como trabalhamos “não produzem apenas efeitos complexos, até contraditórios, nas relações de género” como “reforça desigualdades no seio da força de trabalho feminina”.

Recorde-se que o Barómetro das Diferenças Remuneratórias entre Mulheres e Homens, do Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP), realizado com base nos dados remuneratórios de mais de dois milhões de trabalhadores por conta de outrem, a tempo completo, e com remuneração completa, dá conta de que em Portugal as mulheres ainda ganham menos 13,3% do que os homens. Se considerarmos não apenas a remuneração base mas a média (que inclui prémios, subsídios ou outros suplementos regulares), a desproporção é ainda maior: 16,1%.

O QUE PREVÊ A LEI

– Em Portugal, o Código do Trabalho (CT) contempla a proibição de qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, no acesso a emprego e no trabalho. A norma determina que “o trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical”.

– Nas alterações recentemente introduzidas à norma que enquadra o teletrabalho, a defesa da igualdade é reforçada. O CT define que o trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores. Além das questões salariais e de progressão profissional, a igualdade de tratamento deve ser aplicada aos períodos de descanso e ao acesso à informação das estruturas representativas dos trabalhadores.

– O princípio da igualdade está reconhecido na Europa desde o Tratado de Roma (1957), o “tratado fundador” da UE. Foi criado para garantir um salário igual para trabalho igual, entre homens e mulheres. Ao longo dos anos, a UE adotou várias leis antidiscriminação, aplicáveis na relação entre trabalhadores e empregadores, sendo também conhecidos vários acórdãos do Tribunal de Justiça Europeu nesta matéria.

Novas práticas criam desafios à inclusão

Para que o teletrabalho não agrave desigualdades, as empresas têm de adotar políticas robustas de não-discriminação

A preocupação adensa-se e os alertas surgem de várias frentes. Da Organização Internacional do Trabalho (OIT) à Comissão Europeia, sem esquecer os especialistas em gestão de recursos humanos e quem investiga nas áreas da igualdade e inclusão, todos reconhecem as vantagens do uso da tecnologia, mas confirmam que os novos contextos laborais criados a partir da disrupção tecnológica criam desafios adicionais em matéria de igualdade e inclusão no mercado de trabalho. Em causa estão a discriminação no acesso ao teletrabalho, as progressões na carreira por parte dos profissionais remotos ou até o acentuar das desigualdades salariais.

Entre as várias conclusões que o inquérito da Kelly International permitiu alcançar (ver caixa ao lado), a relativa ao perfil dos trabalhadores remotos em Portugal é particularmente importante, uma vez que ajuda a enquadrar os desafios de gestão resultantes das novas práticas laborais. Ainda que, segundo o relatório, a incidência do teletrabalho (total ou parcial) em Portugal seja inferior à média registada nos restantes países — 36% e 39%, respetivamente —, o perfil dos trabalhadores remotos em Portugal causa apreensão entre os especialistas.

A maior incidência de trabalhadores remotos em Portugal ocorre entre as mulheres (38% trabalham total ou parcialmente a partir de casa), os profissionais mais jovens, abaixo dos 34 anos (40%) e os trabalhadores independentes (freelancers) onde o teletrabalho abrange 74% dos inquiridos, muito acima da média dos restantes países 59%. Ou seja, precisamente os grupos de profissionais que já concentram maior precariedade laboral.

Lei enquadra igualdade

Embora reconheça os riscos desta desproporção, Pedro Pessoa, diretor de Desenvolvimento de Talento da Kelly Portugal, relembra que “o Código do Trabalho e as alterações introduzidas às normas do teletrabalho impõem barreiras aos riscos de discriminação que possam decorrer do trabalho remoto”, ao determinar que aos profissionais abrangidos por este regime têm de ser garantidos os mesmos direitos de progressão e igualdade salarial (ver página ao lado). Por isso, ainda que admita que “a nova realidade impõe desafios adicionais aos gestores e líderes, para garantir a igualdade e a inclusão”, acredita que “a discriminação generalizada dos trabalhadores remotos não será uma realidade”. Mas reforça que “tudo vai depender das ferramentas de gestão que a empresa adote”.

Num parecer recente, emitido a pedido da Presidência Portuguesa da Comissão Europeia (CE), sobre a relação entre o teletrabalho e a igualdade de género, o Comité Económico e Social Europeu sinaliza alguns dos desafios para combater os riscos de discriminação e exclusão laboral decorrentes dos novos modelos de trabalho. “O teletrabalho acarreta o risco de o trabalhador se tornar invisível na comunidade profissional, deixando de beneficiar do apoio das estruturas formais e informais, dos contactos pessoais com colegas e do acesso à informação”, vinca a CE, acrescentando que “esta situação pode levar a que o trabalhador seja descurado no momento da promoção e formação e não disponha de informações importantes em matéria de remuneração e de direitos dos trabalhadores”.

Para as mulheres, realça o relatório da CE, “pode mesmo agravar as desigualdades de género existentes, como a disparidade salarial”, a progressão na carreira e o acesso a posições de liderança. Também a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lança alertas: “A desigualdade e a inclusão também se referem às diferenças entre profissionais que trabalham em regime presencial e remoto” que têm de ser acauteladas para evitar discriminação, realça.

Números

38% dos profissionais portugueses inquiridos no estudo da Kelly admitem que não encontram um propósito no seu emprego atual, apesar de este fator ser determinante para os candidatos na procura de emprego

6,3 numa escala de 0 a 10, é o grau de confiança dos profissionais portugueses numa mudança de carreira nos próximos cinco anos. A média nos restantes sete países inquiridos fica pelos 5,9

71% das mulheres inquiridas em Portugal dizem que a possibilidade de trabalhar remotamente lhes permite uma melhor conciliação do trabalho com as exigências familiares. Na média dos restantes países, só 59% apontavam esta vantagem

Fonte: Expresso