A pobreza não se instrumentaliza

26 Agosto 2022

O crescimento do produto não se traduz automaticamente no aumento do bem-estar material de que usufruem os habitantes de um dado território.

O debate em torno da capacidade existente na economia nacional para gerar riqueza tem vindo a intensificar-se em diferentes esferas. Não raras vezes, os argumentos apresentados baseiam-se nos níveis registados noutros países, a partir dos quais se equacionam os putativos fatores que possibilitam ritmos de crescimento mais elevados. Neste sentido, o Produto Interno Bruto é tido como a principal métrica do sucesso das opções coletivas tomadas e das políticas públicas implementadas, conferindo à noção de pobreza relativa um lugar central nas narrativas construídas. Pressupõe-se, assim, que uma inferior capacidade para produzir riqueza corresponde a um menor bem-estar material de que usufruem as pessoas residentes em Portugal, por comparação com o que se observa em latitudes distintas.

Os termos de comparação escolhidos passam, com frequência, pela Irlanda, os três Estados comummente associados ao mar Báltico e, desde há pouco tempo, a Roménia. Na sequência da adesão à União Europeia, oficializada em janeiro de 2007, a criação de riqueza na Roménia tem crescido a uma taxa média anual que ronda os 3%, excluindo o efeito da inflação, o que a aproxima do montante produzido por residente em Portugal, caso não sejam consideradas as diferenças entre os níveis de preços praticados em ambos os países.

A alicerçar tal crescimento encontra-se o gradual dinamismo de atividades terciárias como as turísticas, de transporte e armazenagem, o comércio ou serviços de informação e comunicação, para além da progressiva integração nas cadeias de valor globais. No entanto, a expansão acelerada do produto tem sido acompanhada por persistentes défices orçamentais e da balança corrente, entre outros desequilíbrios económicos, dos quais se destacam o reduzido grau de cumprimento das obrigações fiscais, a profunda desigualdade no acesso à educação e a elevada percentagem da população em risco de pobreza ou de exclusão social.

De acordo com os dados publicados pelo Eurostat, no ano de 2019, cerca de 36,3% dos residentes em território romeno estavam em risco de pobreza, enfrentavam situações de privação material e social severas ou habitavam em agregados domésticos cuja intensidade laboral era diminuta. Não obstante a tendência descendente observada nos anos precedentes, esta percentagem continuava a ser substancialmente superior à média estimada para o conjunto da União Europeia, a qual coincidia com o valor calculado para Portugal (21,1%).

Ora, apesar de a riqueza criada por residente na Roménia se aproximar do montante produzido em Portugal, excluídas as diferenças entre os níveis de preços praticados em ambos os países, mantém-se uma disparidade assinalável no que concerne à proporção da população em risco de pobreza ou de exclusão social. Por conseguinte, é possível perceber que o crescimento do produto não se traduz automaticamente no aumento do bem-estar material de que usufruem os habitantes de um dado território.

Tal distinção torna-se cada vez mais relevante, conforme a noção de pobreza vai assumindo um lugar central nas narrativas construídas acerca do sucesso das opções coletivas tomadas e das políticas públicas implementadas. A utilização indevida dos conceitos suscita o risco de instrumentalização, que é indesejável, se não mesmo imoral. É, então, fundamental a plena compreensão dos seus significados, dos indicadores que lhes são associados e aos quais se recorre para retratar as condições de vida das pessoas, assim como do que diferencia a criação e a distribuição de riqueza.
A utilização indevida dos conceitos [de riqueza e pobreza] suscita o risco de instrumentalização, que é indesejável, se não mesmo imoral
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À semelhança do que já foi sucintamente referido, entende-se que alguém está em risco de pobreza ou de exclusão social caso aufira um rendimento equivalente inferior a 60% do rendimento mediano nacional, não possua as condições necessárias para dispor de um nível de vida adequado ou faça parte de um agregado doméstico no qual os membros em idade ativa trabalham menos de 21% do tempo em que o podem fazer. Desta feita, é percetível que a pobreza monetária constitui apenas uma das três dimensões tidas em conta, pese embora seja muitas vezes confundida com o próprio indicador.

Não só importa proceder a tal destrinça, como é relevante explicitar que, por norma, se avalia a pobreza monetária na ausência e após a realização das denominadas transferências sociais. Deste conjunto fazem parte, por exemplo, as pensões de velhice e de sobrevivência, o subsídio de desemprego, o abono de família ou o rendimento social de inserção. Imaginando um contexto no qual não houvesse lugar à realização de qualquer transferência social, perto de 44% dos residentes em território nacional encontrar-se-iam em risco de pobreza.

A alusão a este valor é feita, em diversas ocasiões, sem a necessária menção à subjacente exclusão do pagamento de pensões de velhice e de sobrevivência. É certo que o progressivo envelhecimento da população contribui para o aumento da dependência face ao sistema previdencial da Segurança Social – em 2003, a taxa de risco de pobreza era de, aproximadamente, 41% –, porém, se considerado o rendimento das pessoas após a atribuição de pensões, constata-se uma diminuição quase consecutiva da quantidade relativa de habitantes em Portugal a enfrentar tal risco, de 2013 a 2019.

Um flagelo como a pobreza não pode ser instrumentalizado, servindo de arma de arremesso entre interlocutores que preconizam formas de organização coletiva díspares. A sua erradicação implica o entendimento generalizado das múltiplas dimensões que a constituem, o que não beneficia da utilização indevida dos conceitos estipulados, com o mero intuito de persuadir. Importa, então, apelar a que se evite o recurso inapropriado a métricas e termos concebidos para ilustrar situações de profundo infortúnio. Só a compreensão deste fenómeno e da sua complexidade permitirão definir políticas públicas eficazes, que resultem no incremento da coesão e da dignidade na nossa comunidade.

Fonte: João Moreira de Campos, opinião, in Público on-line